por Daiara Tukano
O Brasil tem cerca de 1,7 milhão de pessoas indígenas pertencentes a 305 Povos, falantes de mais de 274 línguas de acordo com os dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE. O Brasil é o quinto maior país em extensão territorial e também um dos países com a maior diversidade cultural e linguística do mundo, no entanto esta riqueza ainda não é amplamente reconhecida pela população nacional. Esta lacuna se deve aos processos históricos de formação do estado nacional onde a população indígena foi uma das últimas a conquistar seus direitos cidadãos dentro do processo de construção democrática do país.
Apresentamos um panorama da situação dos acervos indígenas brasileiros nos museus etnográficos cujo acesso é parte relevante da garantia ao direito à memória e verdade destas populações assim como do conjunto da sociedade brasileira na construção de sua identidade e memória nacional. Priorizamos aqui alguns dos museus mais relevantes do ponto de vista etnográfico no país e no mundo, deixando de lado, nesse momento, acervos de museus indígenas, acervos indígenas de museus de arte e museus arqueológicos.
Os museus modernos nasceram em um contexto de construção narrativa de passado e projeção de futuro de um estado em formação, se edificando como espaços de memória e de construção de um imaginário coletivo, para afirmar uma identidade e um projeto de nação.
Os museus brasileiros se espelharam na construção dos museus europeus, cuja grande maioria constituiu seus acervos durante os períodos coloniais e dos impérios, o que os torna hoje mundialmente reconhecidos pela diversidade de peças reunidas ao redor do mundo: peças antigas retiradas de seus territórios e contextos originários de existência.
Diante deste fato histórico nos perguntamos sobre qual o atual estado dos acervos indígenas do Brasil no país e no mundo: onde se encontram estas importantes testemunhas do patrimônio brasileiro e o quanto elas são acessíveis aos seus detentores originários e à população nacional.
Acervos indígenas em museus do Brasil
Os Museus Brasileiros surgiram oficialmente no início do século XIX, com a criação do Museu Nacional em 1818 no Rio de Janeiro, com acervos primeiramente de tendência naturalista, aos quais gradativamente foram acrescentadas algumas peças etnográficas. Vale notar que as peças etnográficas anteriores a este período se encontram majoritariamente fora do Brasil e que, depois do incêndio do Museu, essas coleções fora do território nacional assumem uma importância crítica para a memória e cultura dos povos indígenas.
Entre os principais acervos podemos citar as seguintes instituições:
• Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado em 1818 contava com mais de 40.000 peças etnográficas; após o incêndio ocorrido em 2018 conta atualmente com aproximadamente 3.200 peças e têm como órgão gestor a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, portanto ligado ao Ministério da Educação.
• Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo – MAE, Fundado em 1960, conta com aproximadamente 150.000 peças etnográficas, além de 850.000 de peças arqueológicas. Entre as principais coleções etnográficas se destacam as coleções de Claude Lévi-Strauss, Cândido Rondon, Curt Nimuendajú, Lux Vidal. É gerido pela Universidade de São Paulo - USP (Estadual).
• Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG fundado em 1911 conta com cerca de 15.000 peças etnográficas de 120 povos e cerca de 1.500.000 de itens arqueológicos da região amazônica. É gerido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Governo Federal.
• Museu Nacional dos Povos Indígenas fundado em 1953, conta com mais de 20.000 peças etnográficas e 20.000 publicações especializadas: (incluindo 400 peças raras), assim como um acervo imagético e documental de 300.000 itens no Centro Audiovisual Indígena do Museu do Índio (CAUDI/FUNAI). O acervo iniciado com a coleção de Darcy Ribeiro também conta com coleções formadas pelos próprios indígenas desde os anos 1980, como as coleções de trançados dos indígenas Xyhcaprô Krahô, Jacalo Kuikuro e Julia Macuxi, bem como as de plumárias, de Talukumã Kalapalo e Arrula Waurá e a grande coleção de cerâmica de Quitéria Pankararu. É gerido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI, ligada até 2023 ao Ministério da justiça e atualmente ao Ministério dos Povos Indígenas.
• Museu do Estado de Pernambuco, MEPE, fundado em 1929, conta com mais de 14 mil peças em seu acervo, no entanto não disponibiliza publicamente em seu site a quantidade de peças etnográficas. Entre suas principais coleções contam: a coleção Etnográfica Carlos Estevão (mais de 3.000 itens: cerca de 2.250 objetos, de 59 povos indígenas, e cerca de 1.200 fotografias colecionadas entre 1909 e 1947; inclui peças arqueológicas de cerâmica marajoara, de Maracá e Santarém, material lítico da região do Pará, Pernambuco e Ceará, e peças etnográficas de plumária, cestaria, cerâmica e armaria indígena coletadas no século XX); a coleção do Comendador Baltar (coleção compreende cerâmicas, armas, instrumentos musicais, máscaras, cocares, tangas, brincos e outros objetos utilitários ou de adorno de diversas etnias amazônicas como os Karajás, Cachibés e Anurinús além de cerâmicas marajoaras). É gerido pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE).
• Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás – UFG, fundado em 1969, conta com aproximadamente 5.300 peças etnográficas, reunindo coleções de objetos representativos dos povos indígenas da Região Centro-Oeste do Brasil (Apinajé, Aweti, Javaé, Kaiabi, Kamaiurá, Karajá, Krahô, Tapirapé, Txicão, Waurá, Xerente), e coleções de objetos ligados a projetos de pesquisa sobre a Cultura Popular no Estado de Goiás. É gerido pela Universidade Federal de Goiás.
• Museu do Índio – Universidade Federal de Uberlândia – UFU, fundado em 1987, conta com cerca de 2.500 peças etnográficas e é gerido pela Universidade Federal de Uberlândia.
• Memorial dos Povos Indígenas – Distrito Federal fundado em 1987 conta com mais de
2.000 peças etnográficas, suas principais coleções são as de Berta Ribeiro e Eduardo Galvão, recebeu recentemente uma coleção de peças apreendidas pela Polícia Federal. É gerido pela Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal – SECULT DF.
• Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia – MAE UFBA, fundado em 1983, conta com 519 peças etnográficas e 50.000 peças arqueológicas. Tem como principais coleções: Xingu, pankararé, tuxá e waurá. É gerido pela Universidade Federal da Bahia.
• Museu Paranaense – MUPA fundado em 1876, não disponibiliza em seu site a quantidade de peças etnográficas de seu acervo. Conta entre suas principais coleções: João Américo Peret, José Loureiro Fernandes, Temístocles de Souza Brasil, Telêmaco Borba, Günther Tessmann, Wanda Hanke e Vladimir Kozák. É gerido pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (SEEC).
Além dos museus públicos, é importante considerar os acervos indígenas em museus privados como:
• Museu do Índio - Manaus, Amazonas, fundado em 1952, que conta em seu acervo cerca de 3.000 peças etnográficas e pertence à Congregação das Irmãs Salesianas de Manaus – Igreja Católica/Vaticano.
• Museu das Culturas Dom Bosco – Campo Grande, Mato Grosso do Sul fundado em 1950, conta em sua coleção mais de 5.000 peças etnográficas dos Povos Boe Bororo; também Povo Kalapalo (Xingu); Povos de Mato Grosso do Sul; Povo Iny Karajá; Povo Xavante; Povos do Alto Rio Negro. Pertence à Congregação Salesiana do Mato Grosso – Igreja Católica/Vaticano.
• Museu de Arte Indígena de Curitiba, Paraná – MAI, fundado em 2009, cota com mais de 1500 peças etnográficas reunidas por Julianna Podolan Rocha Martins e é gerido pelo seu instituto.
Além dos acervos etnográficos e arqueológicos também existem importantes acervos documentais e audiovisuais relativos ao patrimônio cultural dos povos indígenas como o Acervo Audiovisual Documental do Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia (IGPA-PUC), o Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo, LISA-USP, a Cinemateca Brasileira, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Instituto Moreira Salles, e a Biblioteca Nacional.
Além dos museus acima citados existem diversos acervos espalhados pelo Brasil, no entanto é difícil encontrar uma listagem completa dos acervos atuais, o que aponta para a necessidade de um estudo mais completo, assim como do esforço dos órgãos responsáveis para disponibilizar essas informações. Vale salientar que estes acervos demonstram naturezas administrativas diversas: enquanto alguns são ligados a universidades federais e estaduais e, portanto, ao Ministério da Educação, alguns podem estar ligados a outras autarquias federais como outros ministérios ou secretarias estaduais ou municipais.
Ainda que alguns dos museus listados contem com grandes coleções, a maioria conta com espaços expositivos limitados por falta de espaço físico adequado e recursos estruturais e técnicos que possam permitir uma maior exibição de suas peças e torna-las de fato acessíveis ao público de forma mais ampla. A falta de recursos financeiros, técnicos e humanos constantemente alegada pelos órgãos públicos gestores da maioria das coleções denota da ausência do estado que coloca sistematicamente esses patrimônios em risco, assim como foi o incêndio do Museu Nacional ocorrido em 2018.
incêndio do Museu Nacional (crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Acervos indígenas brasileiros no Mundo
Objetos indígenas brasileiros passaram a ingressar coleções de gabinetes de curiosidades europeus a partir do século XVI com o advento da invasão das Américas. Estas coleções particulares na sua grande maioria pertencentes às monarquias passaram a compor acervos de museus nacionais com o advento dos impérios e posteriormente das repúblicas europeias.
As peças indígenas foram na sua maioria coletadas por exploradores, viajantes, missionários, comerciantes e colecionadores que as fizeram chegar em diversos países além dos que firmaram colônia nas Américas. A partir do século XX, com a institucionalização da antropologia no campo acadêmico, grandes acervos indígenas brasileiros também foram constituídos em outros países como na América do Norte e Ásia.
Entre os principais acervos internacionais podemos citar as seguintes instituições:
• Museu Britânico – Londres, Inglaterra, fundado em 1753, conta com 1.500.000 peças etnográficas entre elas 2.891 peças brasileiras, é gerido pelo Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Parlamento Britânico.
• Museu Etnológico de Berlim, Alemanha, fundado em 1886, conta com 500.000 peças etnográficas, entre elas 35.000 da América do Sul. Não disponibiliza em seus sistemas de pesquisa online a quantidade de peças brasileiras. Conta entre suas principais coleções a de Theodor Koch Grünberg. É gerido pelo órgão Coleções Estatais de Berlim.
• Museu de História Natural Americana, Nova York, Estados Unidos, fundado em 1869 conta com 500.000 peças etnográficas, entre elas uma ampla coleção das Américas, mas não disponibiliza maiores informações sobre a quantidade de peças brasileiras. É gerido pelo Conselho de diretores (Board of Trustees), uma organização sem fins lucrativos em parceria público-privada.
• Museu Nacional do Índio Americano (Smithsonian), Washington D.C, Estados Unidos, fundado em 1989, conta com 266.000 peças etnográficas, entre elas 3.074 Peças Brasileiras. Entre suas principais coleções esta a da Expedição Morgan. É gerido pela Fundação Smithsonian – fundação público-privada em nível federal.
• Peabody Museum de Arqueologia e Etnologia, Massachusetts, EUAHarvard, fundado em 1866, conta com 700.000 peças etnográficas, entre elas 2212 peças brasileiras. Conta em suas principais coleções: peças indígenas do século XIX, algumas das quais coletadas por Louis e Alexander Agassiz nas décadas de 1870 e 1880. É gerido pela Universidade de Harvard.
• Cornell University, Anthropology Collections, Ithaca, NY, EUA, acervo Privado fundado em 1872. Conta com 200 Peças Brasileiras, principalmente na coleção Charles Frederick Hartt (de peças marajoara). É gerido pela Universidade Cornell.
• Museu Pitt Rivers, Oxford, Pitt Rivers, Reino Unido, acervo privado fundado em 1884, conta com 660 Peças Brasileiras. É gerido pela Universidade de Oxford.
• Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, Portugal, fundado em 1965, conta com 11.600 peças etnográficas, porém não disponibiliza informações sobre a quantidade de peças brasileiras. É gerido pelo Museu Nacional de Portugal.
• Etnográfico de Viena, Áustria, fundado em 1876 conta com 200.000 peças etnográficas. Ainda que não disponibilize informações exatas sobre a quantidade de peças brasileiras, conte entre suas principais coleções: a coleção Johann Natterer com 2.147 objetos brasileiros e a Coleção da Baronesa Loreto com 1.343 peças. É gerido pela KMHMuseums Verband de contrato público privado.
• Museu da Cultura Mundial de Gotemburgo, Suécia. Fundado em 2004, conta com 100.000 peças etnográficas, entre elas 9.500 Peças Brasileiras. É gerido pela Agência Governamental Museus Nacionais da Cultura Mundial da Suécia.
• Museu do Quai Branly Jacques Chirac, Paris, França. Fundado em 2006 a partir do acervo do antigo Musée de l’Homme, conta com 300.000 peças etnográficas. Não disponibiliza em seu site o número de peças brasileiras. É gerido pelo Établissement Public du Musée du Quai Branly - Jacques Chirac / Ministério da Cultura da França.
• Museu das Civilizações, Roma, Itália. Fundado em 2016, reúne um acervo de mais de 2.000.000 peças artísticas, arqueológicas e etnográficas. Não disponibiliza em seu site informações sobre a quantidade de peças brasileiras. Conta entre suas coleções um importante acervo de objetos do Mato Grosso do Sul e da Amazonia. É gerido pelo Ministério da Cultura da Itália.
• Museu Nacional da Dinamarca, Copenhague, Dinamarca, fundado em 1849. Conta com 300.000 peças etnográficas, entre elas mais de 2.000 peças brasileiras, entre elas uma importante coleção Tupinambá. É gerido pelo Ministério da Cultura da Dinamarca.
• Coleções Estatais de Arte de Dresden, Alemanha, fundado em 2010 à partir da coleção do antigo museu Kunstkammer (fundado em 1560). Conta com 1.028 peças brasileiras. Entre suas principais coleções há peças coletadas por Theodor Koch-Grünberg, é gerida pelo Escritório Estadual de Museus da Saxônia.
• Museu Etnológico Missionário Dom Bosco, Roma, Itália. Data de fundação não divulgada em seu site oficial, conta com importantes coleções brasileiras. Reúne peças etnográficas coletadas ao redor do mundo pela congregação salesiana, que conta igualmente com coleções em museus na Argentina, Brasil, Chile, Equador e Japão além de quatro sedes na Itália, todas geridas pela Congregação Salesiana da Igreja Católica/ Vaticano.
Conhecidos mundialmente pela importância de suas coleções históricas, os museus europeus e norte-americanos se destacam pela amplitude de seus espaços expositivos e pelo tamanho de seus acervos, onde podemos encontrar coleções brasileiras maiores que certos museus no brasil. A maioria destes museus carece de um sistema de informação mais qualificado sobre seus acervos, dificultando o acesso à pesquisa e exigindo um protocolo de solicitação à informação priorizado para o campo acadêmico. Assim como os museus no Brasil, os museus europeus possuem naturezas administrativas diversas, sendo na sua maioria considerados como acervos públicos nacionais. Na américa do norte se destacam os acertos universitários na sua maioria geridos por parcerias publico-privadas.
Museu Nacional de Antropologia do méxico
Referências de Museus Etnográficos na América Latina
Grandes acervos etnográficos passaram a ser construídos na América Latina a partir do século XX enquanto instituições fundamentais para a valorização dos patrimônios indígenas e das culturas originais de nosso continente. Estes espaços de memória tornaram visíveis a importância dos povos indígenas na construção das identidades nacionais e de um imaginário coletivo orgulhoso de suas origens, de seu território e da diversidade cultural de seus países.
Entre os principais acervos latino-americanos podemos citar as seguintes instituições:
• Museu Nacional de Antropologia do México, Cidade do México, México. Fundado em 1964, conta em seu acervo mais de 60.000 peças etnográficas, entre elas 15.000 peças expostas. O museu conta com 23 salas de exposição e cobre uma área de 79.700m², é gerido pelo Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH)
• Museu do Ouro de Bogotá, Colômbia, fundado em 1938, conta com 52.000 peças etnográficas, o museu conta com 6.000 peças expostas em dois andares de exposição permanente além do andar de exposições temporárias, o andar de exploratório educativo e auditório de conferências. É gerido pelo Banco de la República de Colombia (banco central da Colômbia)
• Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera, Lima, Peru. Fundado em 1926, conta com 45.000 peças etnográficas, todas disponibilizadas na coleção online no site do museu. É gerido pela Fundación Museo Larco.
• Museu Nacional de Etnografía e Folklore de La Paz, Bolívia. Fundado em 1925, conta com 33.730 peças etnográficas, entre elas 12.898 peças orgânicas, 10.629 inorgânicos, 10.203 miscelâneos. Organiza Reunião Anual de Etnologia (RAE) e abriga mais coleções de itens da cultura popular do país. É gerido pela Fundación Cultural del Banco Central de Bolívia.
• Museu Chileno de Arte Precolombino, Santiago de Chile, Chile. Fundado em 1981, conta em seu acervo mais de 10.000 peças etnográficas, entre elas 3.000 peças em exposição permanente, também possui uma biblioteca especializada em arte pré-colombiana, arqueologia, antropologia e pré-história das Américas, com um acervo de aproximadamente 10,000 livros, 500 títulos de periódicos e 2,000 textos complementares. É gerido pela Fundación Museo Chileno de Arte Precolombino.
Os museus do México, Colômbia, Peru, Bolívia e Chile aqui citados pela importância de seu reconhecimento a nível nacional e internacional se destacam igualmente pela relevante população indígena em seus países. Ainda que na sua maioria mantenham uma natureza antropológica, estes museus contam com grandes espaços expositivos e uma ampla visitação. Além das instituições citadas existem outros grandes acervos nesses países, o que demostra uma certa política de valorização nacional das culturas indígenas. Diante do panorama de coleções etnográficas nacionais e estrangeiras acima apresentadas podemos meditar sobre os desafios enfrentados no Brasil para alcançar uma valorização mais ampla das culturas indígenas através do acesso de um público mais amplo aos patrimônios indígenas nacionais.
Desafios dos Acervos Indígenas do Brasil
Apesar da notória relevância do patrimônio indígena existente nas coleções etnográficas dispersas no país, os museus brasileiros não dispõem de espaços expositivos amplos capazes de expor a riqueza e diversidade desses acervos.
Uma das missões do museu enquanto uma instituição de memória de cunho científico, educativo e cultural é permitir o acesso amplo da sociedade às coleções por meio das visitas às exposições. Dessa forma, os objetos e os conhecimentos relacionados vão se fazendo presentes no cotidiano da população, permitindo a ampliação do imaginário coletivo sobre os povos originários. As visitas às exposições de peças do acervo são uma forma essencial de sensibilizar os mais diversos públicos para a valorização dos povos indígenas e seus patrimônios, a exemplo dos museus existentes na Europa cuja visitação diária é impressionante.
A manutenção física dos acervos é de importância nacional, a inestimável perda da coleção do Museu Nacional e de outras coleções que queimaram no Brasil, denota da ausência do estado e da ingerência dos órgãos responsáveis, onde os principais prejudicados são os povos indígenas como detentores originários destes patrimônios.
É preciso assegurar recursos para adequação das estruturas físicas dos museus com sistemas climatizados, controle de umidade, filtragem do ar: os acervos em regiões tropicais necessitam de um isolamento adequado para a preservação das peças orgânicas que pedem uma especial atenção para sua conservação, observando temperatura, pressão e umidade. Além disso, o controle de pragas e fungos deve ser constante e acompanhado por equipes técnicas especializadas e equipadas e orientadas para os protocolos de restauro e conservação.
Para além da dificuldade de manutenção e do acesso aos acervos brasileiros, tanto para o conjunto da população nacional, mas particularmente para as populações indígenas (que tiveram esses objetos retirados em distintos contextos de violência de seus territórios) é importante assegurar o acesso virtual às coleções: é necessária a estruturação e manutenção dos sistemas de informação com equipamentos robustos para armazenamento adequado das coleções digitais e sua duplicação (backups); armazenamento em nuvem; equipamentos e equipe técnica para digitalização dos livros de registro administrativo dos acervos como os livros-tombo, inventários e os livros de registro de visitação.
A requalificação dos acervos e atualização da catalogação das coleções indígenas é necessária de modo a permitir o acesso amplo e organizado dos povos indígenas ao seu patrimônio cultural: Historicamente, as coleções etnográficas são organizadas por tipologia, função, etnia, categoria artesanal e pesquisa contextual, associando coleções a dados etnográficos de campo, iconográficos, bibliográficos e audiovisuais. Além da dificuldade em obter informações junto às instituições, conceitos como “etnografia”, “objeto etnográfico”, “coleção etnográfica”, podem assumir entendimentos diferentes. Nem sempre as coleções tiveram uma orientação etnográfica em sua formação, e são fruto de doações aleatórias. Coleções etnográficas podem estar inseridas ou ser reconhecidas como coleções históricas, como coleções de cultura popular, ou nas categorias do sistema de arte - pintura, escultura, etc. Outras dificuldades na organização dos acervos são: catalogações que separam os usos e funções; ausência de dados organizados por povo (muitas vezes as peças de um povo estão dispersas e nem sempre cruzadas, dado que muitas coleções se organizam a partir da lógica do pesquisador que as formou); catalogação por rio ou área geográfica sem o registro do nome do povo, entre outros.
É crucial a existência de uma parceria com o protagonismo com os povos indígenas detentores desses patrimônios para a requalificação das coleções existentes nos museus etnográficos, tal como vemos acontecer em iniciativas do Museu Nacional dos Povos Indígenas (Funai), uma vez que a promoção do acesso físico e digital às coleções indígenas é uma política de reparação do direito à memória e à verdade dos povos originários.
É preciso fortalecer as iniciativas já existentes voltadas à instrumentalização dos museus brasileiros com sistemas digitais que possam aperfeiçoar a gestão e a catalogação de seus acervos, permitindo a difusão integrada dos patrimônios indígenas, como o sistema livre
Tainacan - plataforma online para a criação de repositórios digitais e difusão dos acervos digitais. O Programa Acervo em Rede, instituído pelo Ibram em 2013, busca justamente promover a democratização do acesso digital aos bens culturais musealizados, promovendo também a digitalização e a documentação dos acervos dos museus na internet.
É necessário adotar sistemas integrados para atualizar e compatibilizar os mecanismos de catalogação dos diferentes instituições museais no país, permitindo o compartilhamento de informações, além de revisar e/ou incluir novos campos para a catalogação de metadados e arquivos relacionados para a (re)qualificação dos acervos a partir de uso de padrões, normas e instrumentos técnicos da documentação que considerem as perspectivas indígenas, incluindo, por exemplo, o nome dos povos indígenas ao qual a peça pertence, nome da(s) comunidade(s) e território(s) ao qual pertence; o nome de quem o produziu, caso seja pertinente, o nome do objeto na(s) língua(s) indígena(s) etc. Por fim, é fundamental que exista um portal de busca integrada reunindo todos os acervos indígenas hoje dispersos nas centenas de museus do país.
A construção de protocolos de acesso aos acervos indígenas deve ser realizada com consulta livre prévia e informada junto às comunidades indígenas, como previsto por lei, de forma a assegurar o respeito aos seus usos costumes e tradições, por exemplo, sobre quais peças podem ou não ser acessíveis a um público amplo ou restritas ao povo.
Articulação entre o Ibram e Iphan, do Ministério da Cultura e outros ministérios como o da Educação é necessária para atualizar os sistemas que organizam as coleções digitais dos diferentes museus. Orientação dada por parte do Estado brasileiro, da perspectiva de seus povos originários, para assegurar a democratização do acesso às coleções.
Os museus etnográficos brasileiros carecem de recursos humanos para a pesquisa, assim como de recursos humanos técnicos como arquivistas, restauradores, museólogos e profissionais em Tecnologia de Informação. Estas instituições precisam considerar a importância da contratação prioritária de profissionais indígenas e fomentar a formação especializada de indígenas para atuar nos museus, assim como considerar um espaço de interlocução permanente com os representantes dos povos indígenas, como os conselhos indígenas.
Finalmente planos museológicos devem ser criados e/ou atualizados considerando os direitos garantidos por lei aos povos indígenas sobre seus patrimônios culturais, propriedade intelectual e patrimônio genético.
Para além dos desafios técnicos dos museus etnográficos no Brasil é de fundamental importância considerar a renovação das abordagens curatoriais na exposição dos acervos de forma a construir uma abordagem em diálogo com os direitos humanos dos povos indígenas: qualificando os contextos históricos das peças apresentadas, assim como as realidades contemporâneas e cosmovisões dos povos detentores desses patrimônios.
A construção de programas educativos, com formação de conteúdos dinâmicos e atuais é essencial para um diálogo qualificado com o público: a publicação e disponibilização de atividades didático-pedagógicas voltadas para a comunidade escolar é um caminho aberto para a transformação da relação da sociedade com as culturas indígenas.
O diálogo com as comunidades indígenas, educadores, escolas e museus indígenas nos seus territórios é um exercício necessário para tornar os museus mais amplos em seu desempenho enquanto instituições guardiãs da memória e patrimônio nacional. Pois é nesses espaços que estão sendo germinadas as novas gerações de pensadores às quais está reservado o protagonismo em relação a aquilo que lhes é próprio.
Manto tupinambá do século 17 foi acolhido por cerimônia e comitiva indígena ao longo de dois dias no Rio de Janeiro (RJ).
Por uma Política de repatriação dos Patrimônios indígenas do Brasil
O debate sobre a repatriação de objetos indígenas aos seus territórios de origem tem sido um debate crescente no mundo nas últimas décadas: recentemente o Brasil celebrou o retorno do Manto Tupinambá, doado pelo Museu Nacional da Dinamarca ao Museu Nacional graças à solicitação de lideranças do povo Tupinambá que requereram a devolução da peça desde o ano 2000, quando o manto circulou na exposição “Brasil 500 anos” na cidade de São Paulo. Esse gesto inaugurou uma discussão a nível nacional sobre a restituição de peças indígenas no âmbito do Ministério dos Povos indígenas (fundado em 2003) em diálogo com o Ministério da Cultura, o Ministério da Educação (responsável pelo Museu Nacional) e o Ministério das Relações Exteriores.
O Manto reconhecido enquanto uma das mais antigas e raras peças do patrimônio indígena brasileiro, foi levado à Europa pela Companhia das Índias Ocidentais em 1644 durante a ocupação holandesa no Brasil, chegando na Dinamarca em 1689 enquanto um presente entre monarquias, passando a fazer parte das coleções de raridades que posteriormente formaram o acervo do museu nacional dinamarquês. Atualmente existem 11 mantos Tupinambás, em diferentes estados de conservação, estando os outros dez em museus da Bélgica, França, Itália e Suíça, enquanto testemunhos históricos da Guerra da França Antártica e do processo de colonização do Brasil, da invasão dos territórios indígenas e do esbulho de seus patrimônios.
Os primeiros relatos sobre o povo Tupinambá marcaram o imaginário europeu sobre os povos indígenas do Brasil, em textos como o de Hans Staden ilustrados com gravuras que os mostravam como selvagens antropófagos e cruéis, como um meio de justificar a imposição da “civilização” europeia no dito “novo mundo” ou “as índias” logo apelidadas de “américas”.
O povo Tupinambá conhecido por ser um dos povos de primeiro contato no território que veio a se tornar Brasil, conta com uma história de resistência de 500 anos à violência de uma narrativa colonial que chegou a considera-lo extinto após submetê-lo a um severo processo de genocídio. No século XX, retomou seu fortalecimento com o advento da formulação dos direitos indígenas do brasil durante a redemocratização do país e a constituição de 1988. Desde então seguem em constante luta pelo reconhecimento e demarcação de seu território, a retomada de sua língua e a reconstrução de sua memória, resistindo em diversos estados brasileiros, principalmente no estado da Bahia que também apresenta um dos mais altos índices de violência contra lideranças indígenas.
O patrimônio histórico do povo tupinambá é bastante reduzido em relação a povos de mais recente contato, no entanto sua experiência não é distinta daqueles povos que fizeram contato antes do século XX. Os objetos indígenas do Brasil coletados entre 1500 e o século XIX, o período das regências da coroa Portuguesa e o Império Brasileiro, cuja grande maioria se encontra hoje em território europeu, chagaram por vias diversas: primeiramente enquanto esbulhos das guerras da França Antártica, mas principalmente pelo tráfico mercantil de objetos considerados “exóticos” para compor os antigos “gabinetes de curiosidades reais”, como foi o caso dos 11 mantos Tupinambá e de outras peças hoje presentes em museus de Portugal, França, Holanda e Dinamarca.
O contato com os povos indígenas para a ocupação das américas foi primeiramente protagonizado pelas missões católicas em parceria com as igrejas europeias. Os missionários como corpo de trabalho encarregado de “civilizar” aqueles então considerados “selvagens”, foram encarregados e introduzir as línguas e crenças europeias, proibindo sistematicamente as línguas e práticas indígenas, levando uma quantidade significativa de objetos cerimoniais para seus acervos próprios que até hoje estão presentes no vaticano e outros museus de países então católicos como Portugal, Espanha e Itália. Além dos objetos em si, nos acervos dessas missões constam importantes documentos de registros administrativos geridos por essas instituições.
Com a instalação da corte portuguesa no Brasil, missões de cunho científico para reconhecimento do território nacional também formaram coleções naturalistas e etnográficas formadas por artistas, cientistas e exploradores vindos de coroas relacionadas às famílias regentes. Estas importantes coleções acabaram parando nos acervos de países como Áustria e Alemanha. Já durante o curto período do Império Brasileiro, com o surgimento do Museu Nacional, patrimônios indígenas passaram a ser exibidos e presenteados a acervos europeus, como aqueles expostos durante a Exposição Universal de 1900.
Desde então e o longo do Século XX com a estruturação da antropologia enquanto área de conhecimento científico, passaram a se formar acervos reconhecidamente etnográficos em diversos países como França e Inglaterra, mas também na América do Norte, especialmente nos Estados Unidos, levados por pesquisadores através de seus trabalhos de campo junto às comunidades que eram seus “objetos de estudo”. Neste mesmo período se forma ampla maioria dos acervos etnográficos do Brasil até hoje em constante crescimento e reconstrução.
Um fator comum a todos estes períodos históricos foi a alienação aos povos indígenas de seus patrimônios culturais, seja eles de natureza material ou imaterial, sendo tratados primeiramente enquanto “selvagens”, “menos que humanos” ou “objetos de estudo”. Vale salientar que até a publicação do Estatuto do Índio em 1973 os indígenas eram considerados “incapazes” sob a tutela do estado, disposição jurídica que apenas foi se alterar em 1988 com a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando se incluiu através da articulação do emergente movimento indígena nacional o capítulo VIIIº que dispõe sobre os direitos indígenas e coloca no Art. 231 que São reconhecidos aos “índios” sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A conquista de 1988 foi possível a uma ampla articulação internacional dos movimentos indígenas que conta entre seus marcos legais a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); a Convenção para o Fomento das Relações Culturais Interamericanas (1954); a Declaração dos Princípios e da Cooperação Internacional (1966) e a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (1972).
Mas foi com o advento Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho para Povos Indígenas e Tribais (1989), assinada pelo Brasil em 2002 que foi possível dar entrada numa construção mais ampla de novos marcos legais sobre os direitos culturais dos povos indígenas no Brasil como: O Registro de bens culturais de natureza imaterial e sobre o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, IPHAN, Decreto ne 3.551, de 04 de agosto de 2000.
Com a gestão do Ministro Gilberto Gil na pasta do Ministério da Cultura em 2003, se iniciou um diálogo direto com o movimento indígena, que finalmente começou a incluir suas demandas de forma estruturada a partir da Iª Conferência Nacional de Cultura de 2005.
Desde então os direitos culturais dos povos indígenas constam nos autos do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) - Decreto 5.520, de 2005; da Comissão Nacional de Política Indigenista - Decreto se 22, de março de 2006; na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Decreto nº. 5753, de 12 de abril de 2006; a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Indígenas (PNPCT) - Decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007; a Lei 11.645 de 10 de março de 2008 sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena na LDB; a IIª Conferência Nacional de Cultura de 2010; o Plano Nacional de Cultura - Lei no 12.343 de 2010; a criação do Colegiado Setorial para as Culturas Indígenas de 2010; a Lei da Política Nacional de Cultura Viva13.018, de 22 de julho de 2014; a publicação do Plano Setorial de Culturas Indígenas 2010/2012; a IIIª Conferência Nacional de Cultura de 2013; a Iª Conferência Nacional de Políticas Indigenistas de 2015 e a IVª Conferência Nacional de Cultura de 2024.
Nesses marcos legais nacionais e internacionais é possível ver a construção das políticas culturais para os povos indígenas enquanto políticas de reparação necessária diante das graves violações aos direitos humanos cometidas historicamente ao longo do processo colonial, assim como da formação do estado brasileiro. O relatório da Comissão Nacional da Verdade realizada entre 2012 e 2014, que apontou a gravidade dos crimes cometidos contra as populações indígenas durante a ditadura militar, orientou para a necessidade de se construir uma política de combate contra o racismo estrutural contra os povos indígenas presente na sociedade brasileira até hoje.
O papel e responsabilidade dos museus diante desse panorama aponta para a necessidade do engajamento dessas instituições dentro e fora do Brasil para um acesso amplo e justo à memória e verdade dos quais todos somos herdeiros.
Ainda que termo “Repatriação” cause estranhamento para muitos, é importante compreender que se trata de um debate em processo de construção onde o cerne está em como reparar as violências herdadas do processo colonial, não apenas para os povos indígenas, mas para o conjunto da sociedade, seja ela nacional ou internacional.
Enquanto se constroem os processos jurídicos e diplomáticos para a existência de uma legislação nacional e internacional sobre repatriação, é importante compreender que a reparação se tece de várias etapas, sendo a primeira delas uma leitura sobre o panorama atual dos acervos indígenas: quantas peças os constituem, onde se encontram, qual seu atual estado de conservação, como funciona sua catalogação e principalmente qual seu grau de acessibilidade ao público em geral, mas principalmente aos seus detentores originários – os povos indígenas.
Num segundo momento é fundamental considerar a importância das colaborações diplomáticas, técnicas e científicas para que esses acervos se tornem cada vez mais acessíveis à sociedade permitindo a renovação de narrativas demasiadamente obsoletas, assim como de dinâmicas de poder que mantém a inacessibilidade aos acervos e à informação apenas reafirmando a dinâmica do esbulho intermitente dos patrimônios indígenas.
O acesso à informação, cada vez mais facilitado pelas novas tecnologias são um caminho fundamental para um diálogo mais honesto com os povos indígenas, uma vez que grande parte dos acervos se encontra fora do território nacional: a Restituição Digital dos acervos é um primeiro passo importante para construir a possibilidade de devolução física de peças importantes para seus detentores originários caso estes a desejarem.
O contato com as peças e registros históricos mantidos nos acervos dos museus é fundamental para a manutenção e fortalecimento das culturas indígenas, onde o processo de repatriação não se limita à devolução ao território nacional mas se expande na retomada e valorização dos usos, práticas e saberes ancestrais, o que constitui o verdadeiro processo de reparação que apenas pode ser protagonizado por nós: povos indígenas.
Cabe aos Estados arcar com a responsabilidade histórica sobre as violações cometidas contra as populações indígenas enquanto um gesto democrático; tecer relações que possibilitem um diálogo aberto entre os museus a nível nacional e internacional para melhor gestão de seus acervos e de sua institucionalidade enquanto centros de patrimônio e memória.
Finalmente, para construir uma política concreta de repatriação no Brasil, é necessário que haja espaços aptos a receber os acervos que hoje se encontram no estrangeiro: É absurdo que um país com as dimensões continentais do nosso, com a maior quantidade de povos e línguas indígenas do planeta não tenha sequer um espaço amplamente representativo da diversidade indígena nacional, que possa ser amplamente visitado pelo público nacional e internacional. Todos nossos acervos nacionais pedem e merecem uma reestruturação que lhes permita o reconhecimento da sociedade.
Entre todos os museus brasileiros, o Museu Nacional dos Povos Indígenas, antigo Museu do Índio, criado em 1953 por Darcy Ribeiro, foi concebido como o primeiro museu da América Latina voltado para o combate ao do preconceito e racismo anti-indígena. Hoje, o MNPI integra a estrutura da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, sendo o órgão responsável pela execução nacional da Política Cultural para os povos indígenas brasileiros, enquanto órgão de cunho científico-cultural da Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Responsável pela salvaguarda do patrimônio material e imaterial dos povos indígenas, dos acervos arquivísticos, museológicos e da política de editoração de publicações sobre memória e patrimônio cultural dos povos indígenas brasileiros. O acervo arquivístico da instituição contempla documentos a partir do final do século XIX, sendo considerado pela UNESCO como Patrimônio Memória do Mundo, por conter documentos e importantes registros históricos do violento processo de contato com o Estado, e dos processos de luta e resistência dos povos indígenas.
O Museu Nacional dos Povos Indígenas é o único museu brasileiro que conta com um sistema de acesso direto aos povos indígenas através da estrutura da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI. Também se tornou o primeiro grande acervo etnográfico a contar com uma direção indígena no país, que não tem medido esforços, apesar da falta de recursos e da fragilidade de seus espaços físicos (a sede no Rio de Janeiro tendo estado fechada para reformas por uma década), para fortalecer o protagonismo indígena em todos seus espaços. Acredito que o Museu Nacional dos povos indígenas tem legitimidade para crescer em todos os sentidos, e precisa adquirir um espaço físico maior e mais qualificado, assim como mais recursos técnicos e
humanos para poder ser a instituição protagonista nos processos de repatriação e reparação dos patrimônios culturais indígenas no Brasil.
Sugestões da conselheira ao MINC:
- Fortalecer a presença e protagonismo indígena dentro do ministério da cultura com a criação de uma assessoria indígena no gabinete executivo do ministério para facilitar a pauta indígena dentro do sistema MINC, uma vez que as políticas culturais para povos indígenas pedem uma ação transversal entre todas as secretarias e instituições de cultura assim como ações interministeriais.
- Contratar servidores e/ou consultores indígenas no IBRAM, IPHAN e SCDC para colaborar na implementação das diretrizes já colocadas na lei em relação aos direitos culturais dos povos indígenas, assim como das orientações colocadas no plano setorial de culturas indígenas.
- Dar continuidade ao Grupo de Trabalho sobre repatriação em diálogo com o Ministério dos Povos Indígenas, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Educação e Ministério dos Direitos Humanos.
- Realizar um Fórum internacional sobre repatriação, com representações dos acervos nacionais, assim como de acervos e museus estrangeiros (especialmente aqueles que guardam grande número de peças brasileiras), museus indígenas e especialistas da área, Unesco, ICON, MPI, MEC, MDH e MRE com o intuito de debater a criação de uma política nacional de restituição de acervos e repatriação.
Memória é sentimento – minha experiência pessoal
Pertenço ao povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano, que habita a região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Descendo do Clã Erëmiri Ahûsirõ Paramerã, de grandes conhecedores, mestres dos cantos e das cerimônias. Desde muito jovem ouvi de meu pai a história de como meu bisavô Erëmiri, jogou seu colar de pedra e outros instrumentos cerimoniais no rio para que estes não fossem tomados pelos missionários salesianos que na época estavam instalando internatos para as crianças indígenas no Alto Rio Negro. Meu povo como muitos outros passou por uma violenta história de colonização, e hoje a maior parte desses objetos se encontra em museus: deixaram de ser produzidos e usados em nossos territórios devido à pressão das políticas integracionistas do estado brasileiro. Pessoalmente só tinha visto os colares de pedra nas fotografias de Theodor Koch Grunberg, e nos registros de seus acervos levados para a Alemanha. A primeira vez que vi um colar de pedra foi numa visita ao antigo Museu do índio: chorei de muita emoção, um misto de tristeza e alegria, injustiça e esperança. Desde então passei pesquisar onde estavam as demais peças de meu povo nos museus ao redor do mundo, encontrei nos mais diversos países: Alemanha, Portugal, Itália, Áustria, Inglaterra, França, Estados Unidos e até no Japão. Dois anos passados dessa pesquisa percebi que mais de 80% das peças de meu povo estava de fato fora do Brasil. Se meu povo que é relativamente mediano e pouco conhecido enfrenta essa realidade, imagina qual é a situação dos demais povos indígenas? Hoje em nossa região são poucos os anciões que ainda guardam as rezas e cantos antigos. Há um século as iniciações tradicionais foram proibidas, os que resistem e guardam algum conhecimento o fizeram à revelia de tudo e de todos. Foi essa consciência que me levou a querer desenvolver minha arte, a criar interesse pela cultura de meu povo, pela resistência do movimento indígena, pelos direitos humanos, e a pesquisar o direito à memória e verdade. No dia daquela visita ao Museu do índio entendi que memória é sentimento, e que cabe a nós trabalhar para que o sentimento cultivado seja de pertencimento, orgulho e alegria de sermos indígenas.
Resistiremos.
Indígenas Tukano tocam o trocano, instrumento feito com tronco único de madeira, na sessão de abertura - Rovena Rosa/Agência Brasil
por Daiara Tukano. Artista visual, professora pesquisadora em História da Arte, Mestre em Direitos Humanos – PPGDH/UnB e Conselheira Nacional de Cultura representando os Povos Indígenas no CNPC/MINC.
Palavras chave: povos indígenas, patrimônio, museus, reparação, repatriação.
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