A floresta é diversa e assim também são os povos que contam em suas origens a medicina hoje mais popularmente conhecida como ayahuasca. Porém, poucos sabem quais e quantos somos, quais territórios ocupamos, nossos contextos históricos de contato com o mundo ocidental e nossa resistência política na atualidade.
Diante de um contexto global em que a ayahuasca é atualmente mais acessada por não indígenas (brancos e economicamente privilegiados) do que por indígenas; em que acadêmicos, cientistas e líderes religiosos discutem amplamente sobre a expansão, legalização, democratização, mercantilização, medicalização, sincretização e sintetização da medicina, é necessário se questionar sobre a importância da representação e autonomia dos povos indígenas ao meio dessas discussões.
O Cipó cientificamente catalogado como Banesteriopsis caapi é reconhecido como uma planta originária da bacia amazônica; porém os territórios culturais da ayahuasca extrapolam os afluentes do grande rio, se estendendo às regiões dos andes, caribe, pantanal e mata atlântica. Aproximadamente 160 povos indígenas da ayahuasca se fazem presentes no Equador, Brasil, Bolívia, Colômbia, Panamá, Peru e Venezuela.
A ayahuasca é tão diversa quanto seus povos de origem, é uma bebida com muitos nomes, técnicas de preparo, composições e métodos de condução. Os saberes e práticas ao redor da ayahuasca e demais medicinas dos povos indígenas compõem nosso patrimônio científico, cultural e genético.
Nossas narrativas antigas ainda contam sobre as trocas cerimoniais, alianças e rivalidades entre povos vizinhos desde antes da invasão. Assim como nossos territórios extrapolam os as fronteiras políticas dos estados modernos, nossas relações cosmogónicas são mais amplas e complexas que as classificações de famílias linguísticas colocadas sobre nossos povos. Somos famílias de onças, peixes, cobras, pássaros, e outros filhos das florestas, dos rios, da terra e do céu; reconhecemos nossas famílias espirituais quando compartilhamos nossos cantos e histórias, e mantemos relações diplomáticas antigas. As cosmovisões indígenas já eram globais antes da “globalização” ocidental, que continua marcada pela invasão e esbulho de nossos territórios materiais e imateriais: nossas terras, ciências, tecnologias, culturas e conhecimentos.
Os contextos de contato dos povos indígenas com o ocidente e as histórias invasão de nossos territórios também são diversos: em mais de quinhentos anos de genocídio todas nossas populações foram reduzidas, muitas desapareceram, outras perderam suas línguas (mas não seus saberes), uns fizeram contato apenas recentemente e poucos ainda se mantém isolados na floresta. Todos enfrentamos o racismo e violência contra nossos corpos e culturas. Todos lutamos pela defesa e reconhecimento de nossos territórios, de nossos direitos e pela construção das políticas necessárias para permitir que continuemos existindo.
Para além tantas urgências, enfrentamos a dificultação do acesso ao diálogo equitativo com as instituições ocidentais, seja pelo afastamento ou marginalização de nossos territórios e saberes, assim como a falta histórica de políticas públicas e acesso às tecnologias. Existem muitas discussões que nos dizem respeito que continuam sendo levadas sem nosso conhecimento nem reconhecimento. Diante do contexto de globalização como fica a representação e autonomia dos povos indígenas em relação à ayahuasca e demais medicinas?
O interesse do ocidente pela ayahuasca foi recebido por alguns povos como uma oportunidade de tecer alianças para o fortalecimento político e cultural. A globalização nos traz relações complexas em que alguns poucos povos se tornaram internacionalmente conhecidos por receber visitantes em retiros de ayahuasca, porém a grande maioria continua sendo ignorada ou desconhecida.
Após pesquisar tendo como referência pesquisas acadêmicas e a colaboração de parentes indígenas, reuni a seguinte lista de povos que contam com a ayahuasca em suas culturas de origem. Muitos destes povos tiveram seus territórios divididos pelos estados modernos, outros tiveram suas populações deslocadas no processo de ocupação e construção dos países. Alguns são considerados pelos pesquisadores como tendo um contato mais recente com a ayahuasca através de troca com outros povos indígenas. Não estão listados aqueles que relatam ter tido um contato mais recente pela globalização ocidental da medicina.
Atribuir um número preciso aos povos que usam a ayahuasca não é uma tarefa simples, pois muitas vezes é difícil definir se comunidades vizinhas com costumes e línguas semelhantes constituem grupos étnicos distintos; A identidade étnica compreendida hoje é um conceito que vai se desenvolvendo à medida que os povos se organizam por seus direitos . Nomes diferentes para os mesmos grupos aumentam a dificuldade, às vezes, o mesmo nome é atribuído a vários grupos diferentes (alguns nomes alternativos, grafias e famílias linguísticas estão entre parênteses).
Alguns povos foram considerados extintos; alguns parecem ter abandonado o uso da Ayahuasca sob pressão missionária ou das políticas de “integração” nacionais. A grande maioria dos povos contam com poucos anciões mestres de saberes tradicionais e enfrenta dificuldade de interesse ou passagem destes conhecimentos para as novas gerações.
Estas informações são fundamentais para compreender a complexidade dos contextos de nossos povos, das discussões relativas à ayahuasca, da construção de políticas nacionais e internacionais para a proteção de nosso patrimônio e para a construção da comunicação e aliança entre indígenas e não indígenas.
- por Daiara Tukano, março de 2022.
Conforme definido pela língua e características culturais comuns, podemos considerar aproximadamente 160 povos indígenas ayahuasqueiros:
Achagua (Xagua) – Colômbia
Achuar (Achual, Achuara) – Equador / Peru
Ajyíninka Apurucayali – Peru
Amahuaca (Amenguaca, Sayacu) – Peru
Amahuaca (Pano) – Peru
Amuesha (Yanesha, Amuese, Amueixa, Amoishe, Amagues, Amage, Amajo, Amuetamo) – Peru
Andoke (Andoque) – Peru / Colômbia
Angutero (Ancutere, Pioje) – Peru
Apolima – Arara - Brasil
Arabela (Chiripunu) – Peru
Arapaço, Airo-pai (tukano) – Brasil
Ashaninka (Ashaninca, Campa) – Peru / Brasil
Ashéninka (Asheninca) – Peru
Awajún (Aguaruna) – Peru
Awishiri – Peru (considerado extinto)
Baniwa (Aruák) – Brasil / Venezuela
Barasana (Paneroa, Eduria, Edulia) – Colômbia / Brasil
Baré - Brasil
Bora (Boro) – Peru / Colômbia
Cabiyari (Cabiuarí, Cauyarí, Kauyarí, Cuyare, Kawillary) – Colômbia
Cacua (Báda, Kákwa) – Colômbia
Cahuarano – Peru
Callawaya - (Quíchua), Bolívia – Peru
Candoshi-Shapra (Kandoshi) – Peru / Brasil
Capanahua (Kapanawa) - Peru
Caquinte – Peru
Carabayo (Macusa) – Colômbia
Carapana (Mochda, Moxdoa, Karapaná, Karapano, Mextã) – Colômbia / Brasil
Carijona (Karijona, Carihona, Umawa, Hianacoto-Umaua) – Colômbia
Cashibo-Cacataibo (Kashibo-Kakataibo) – Peru
Chachi (Cayapa, Kayapa) – Equador
Chama (Es’e Ejja) – Bolívia
Chamicura (Chamikura) – Peru
Chasutino – Peru / Bolívia
Chayavita (Chayahuita, Shayabit, Chawi, Tsaawi, Tshaahui, Tschhuito, Paranapura) – Peru
Chebero (Jebero, Xebero, Xihuila) – Peru
Chiriruano, Avá guaraní - (Guarani)- Bolívia, Brasil, Paraguai, Argentina
Choco (Choko) – Colômbia
Cocama-Cocamilla (Kokama, Huallaga, Pampadeque, Pandequebo, Ucayali, Xibitaoan) – Peru
Cofán (Kofan, Kofane, A'i) – Equador / Colômbia
Colorado - Tsáchilas – (Chibcha) - Equador
Conibo – Peru
Coreguage - Colômbia
Cubeo (Kubeo, Cuveo, Kobeua, Kubwa, Kobewa, Pamiwa, Hehenawa) – Colômbia
Cuiba (Cuiva, Kuiva, Kuiba, Kwiba, Cuiba-Wámonae) – Colômbia / Venezuela
Culina (Kulina) – Peru / Brasil
Curripaco (Kurripaco) – Colômbia
Desana (Desano, Wina, Boleka, Oregu, Kusibi) – Colômbia / Brasil
Embera (Emperã, Eberã, Atrato, Baudó, Catrú, Embena, Eyabida, Chami) – Colômbia / Panamá
Ese'ejja (Chama) – Bolívia / Peru
Guahibo (Sikuani) – Colômbia / Venezuela
Guarani Mbya – Bolívia / Brasil
Guarani Nhandeva - Brasil
Guayabero (Jiw, Cunimía, Mítus, Mítua) – Colômbia
Gwanana (Guanano, Wanana, Uanano, Kotiria, Anana, Kótedia) – Colômbia
Harambket (Mashco, Amarakaire, Amarakaeri) – Peru
Hianakota-Umana – Brasil
Huachipaeri – Peru
Huambisa (Wambisa) – Peru
Huni Kuin (Pano) Peru / Brasil
Hupda-Maku (Hupde) – Brasil / Colômbia
Ikito (Iquito, Iquita, Amacacore, Hamacore, Quiturran, Puca-Uma) – Peru
Iñapari (Iñamari) – Peru
Inga – Colômbia
Ingano – Colômbia
Isconahua (Iscobaquebu) – Peru
Ixiamas Chama (Tacana) – Bolívia
Juruna - Brasil
Kabuvari – Brasil
Kacha’ – Peru
Kambeba - Brasil
Kamsá (Camsa, Sibundoy, Coche) – Colômbia
Kanamari (Família Catuquina) - Brasil
Katuquinas (Pano - Katuquina) – Brasil
Kaxinawa - (Pano) – Brasil
Kofan (Cofan) - (Quíchua/Quechumaran) Equador / Colômbia
Kokama – Brasil
Koreguaje (Coreguaje, Correguaje, Ko'reuaju, Caquetá, Chaocha Pai) – Colômbia
Kulinas-madirrás, Kulina-Madihá, (Arauá). - Brasil
Kulinas-pano, Kulina – (pano) - Brasil
Kuntanawa - Brasil
Lamistas (Lamista, Lama) – Peru
Macaguan (Macaguane, Hitnü) – Colômbia
Machiguenga (Matsikenka, Matsigenga, Matsiganga, Mañaries) (aruák) – Peru
Mai Huna – Colômbia
Maku (Cacua) – Colômbia / Brasil
Maku (Macu-camãs, Macu-iuhupde, Macu-nadebes) (hupde) - Brasil / Colômbia
Makuna (Macuna, Buhagana, Yeba, Suroa, Tabotiro Jejea, Umua, Wuhána, Paneroa, Jepa-Matsi) – Colômbia / Brasil
Manchinery - Brasil
Marinahua – Peru
Marubo (Pano) – Brasil
Matis - Brasil
Matses (Mayoruna, Morique) – Peru
Mazan – Peru (extinto)
Menimehe – Colômbia (aparentemente extinto)
Miranha – Colômbia
Mojo (Mojos, Moxo, Moxos) – Bolívia
Muinane (Murui, Muinana, Muinani, Muename) – Colômbia
Muísca (Chibchas) - Colômbia
Muniche (Otanave, Otanabe, Munichino, Munichi) – Peru
Nanti (Kogapakori) – Peru
Napo Runa, Lower (Orellana Runa, Uku Napo Runa) – Equador / Peru
Napo Runa, Upper (Quijos, Napo Kichwa, Awa Napo Runa, Quichuas de Tena) – Equador
Noanama Wounaan, waunana, (Chocó), Colômbia
Nomatsiguenga (Nomatsigenka, Atiri) - Peru
Nukini - Brasil
Ocaina – Peru
Omagua (Pariana, Anapia, Macanipa, Yhuata, Umaua, Cambela) – Equador / Peru / Brasil
Panobo – Peru (considerado extinto)
Pastaza Runa (Canelos, Alama) – Equador
Piapoko (Piapoco) – Colômbia
Piaroa (Kuakua, Guagua, Quaqua) – Colômbia / Venezuela
Pioche – Colômbia
Piratapuyo – Colômbia / Brasil
Piro (Yine, Mashco Piro, Mashco, Cujareño, Simiranch) – Peru
Pisabo (Pisagua, Pisahua) – Peru
Puinave (Puinabe) – Colômbia
Puyanawa - Brasil
Resigaro (Resigero) – Peru
Saliba – Colômbia
Secoya (Quíchua-Tukano) – Equador / Colômbia / Peru
Shanenawa, (Pano) - Peru, Brasil
Shawandawa - Brasil
Shetebo – Peru
Shipibo-Conibo (Pano) – Peru
Shiwiar – Equador / Peru
Shuar (Shuara, Jivaro, Jibaro) – Equador / Peru
Siona – Equador / Colômbia
Siriano (Tubu) – Colômbia / Brasil
Taiwan – Colômbia
Takana – Bolívia
Tamas – Brasil
Tanimuka (Tanimuca-Retuara) – Colômbia
Tariano – Brasil
Tatuyo (Pamoa, Oa, Tatutapuyo, Juna) – Colômbia / Brasil
Taushiro (Pinchi) – Peru
Tetete – Colômbia / Equador (considerado extinto)
Tikuna (Ticuna, Tukuna) – Brasil / Colômbia
Tsachila (Colorados) – Equador
Tukano (Tucano) – Colômbia / Brasil
Tutapi (Orejon, Oregon, Orechon, Payagua, Mai Ja) – Peru
Tuyuka – Colômbia / Brasil
Uitotos, Huitotos, Murui-muinane - Peru
Uranina – Peru
Waikino (Uaikena, Piratapuyo, Urubu-Tapuya) – Colômbia
Waimaha – Colômbia
Wanano (Kotiria) - Brasil
Waorani (Huaorani. Auca) – Equador
Witoto (Huitoto, Uitoto, Minika, Bue) – Colômbia / Brasil
Yagua (Yahua, Llagua, Yegua, Yava, Nijyamïï Nikyejaada) – Peru
Yaminawa (Yaminahua, Jaminawá, Yuminahua, Yamanawa, Chitonahua) – Peru / Brasil
Yari – Colômbia
Yawanawá, (Pano) - Brasil.
Yebasama – Colômbia
Ye'kuana (Makiritari, Maquiritare) (caribe) – Venezuela / Brasil
Yora (Pano) - Peru
Yora (Yura, Yuranahua, Yoranahua, Parquenahua, Nahua) – Peru
Yukuna (Matapi (Matapie) – Colômbia
Yuruti – Colômbia
Záparo – Equador / Peru
-
Referências:
1. Steward Julian H. (Ed.) Handbook of South American Indians. Vol 5 The comparative ethnology of South American Indians. Bureau of American Ethnology. Bulletin 143, Washington, DC, 1949
2. Ribeiro, Darcy (Editor) et alii Suma etnológica brasileira. Edição atualizada do Handbook of South American Indians. Petrópolis, RJ, Vozes – FINEP, 1986
3. Reinburg, P. "Contribution a l'étude des boissons toxiques des indiens du nordouest de l'Amazonie, l'ayahuasca -le yaje - le huanto." Journal de la Societé des Americanistes de Paris (n.s.) 13:25-54; 197-216. Paris. 1921
4. Tessmann, Giinter. Die Indianer Nordost-Perus. Hamburg: Friederichsen, de Gruyter and Co. 1930
5. Taussig, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem, um estudo sobre o terror e a cura. RJ, Paz e Terra, 1993
6. Bolsanello, Débora Pereira. Busca do Graal brasileiro, a doutrina do Santo Daime. Bertrand do Brasil, 1995
7. Luz, Pedro F.L. Estudo comparativo dos complexos ritual e simbólico associados ao uso da Banisteriopsis caapi e espécies congêneres em tribos de língua Pano, Arawak, Tukano e Maku do noroeste amazônico. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996
8. Ayahuasca.com, Homepage of Amazonian Great Medicine What indigenous groups traditionally use Ayahuasca?
9. Carta da 1ª Yubaka Hayrá – Conferência indígena da Ayahuasca. https://www.xapuri.info/resistencia-indigena/sagrado-indigena/carta-da-1a-yubaka-hayra-conferencia-indigena-da-ayahuasca/
10. Union de los médicos indígenas yagezeros de la amazonia colombiana - https://umiyac.org/
11. Pesquisa oral em conversas com parentes indígenas em cerimônias, encontros de pajés e reuniões do movimento indígenas no Brasil.
Contribuições são sempre bem vindas. añû.